03/03/2012

Na rua do beco...

Na rua do beco, envolta na névoa, acatam-se os motores dos carros que passam sem norte na perpendicular.
O apartamento fica ao fundo, na direita da rua sem caminho seguinte. Os passos não se ouvem no vácuo que a rua do beco cria.
Foi acordada pela campainha, olhou o relógio que dita o tempo da vida. Marcava quatro da manhã. Quem será? O que será? O que me traz a campainha que ouço? Ponderava ela.
Desceu as escadas de madeira que pareciam ganir, soltas pela antiguidade, estalando de ocas. Havia sempre, ante a porta, aquele corredor longo e estreito. Sentiu ânsia e anseio. Perguntou-se!… mas antes de responder-se caiu para trás com o som brusco da porta derrubada e empurrada.
Uma voz alta e grossa, severa e determinada ecoou no corredor estreito e longo.
Porque vindes a horas tão despropositadas à minha calmia? Perguntou-lhe e escutou: porque somos nós e existimos como nós?! Percebeu a unidade…
A voz grossa continuou. Ouço os batimentos desse teu coração e ordeno senti-los na palma gélida que trago na mão.
Senti-o a aproximar-se, zumbia num arfar fumegante, solitário, as artérias dilatadas pareciam rachadas. Sabia que também ele recebia o som do seu diafragma contraído, uma inspiração forte e curta.
Que fazemos? Questiona-me e continua. Ouves o nosso anseio. Inspiro e revelo: quem és? Como se não soubesse quem era...
A minha razão ouve-nos de súbito colar ao chão. Penso fugir-lhe, fugir do que escuto! Não?! Ao invés existo por fim ali.
Marchamos no vento que corre no corredor longo e estreito. A pálida lâmpada deambula num compasso grave. Na rua do beco o silêncio ouve-se. E nós? Nós somos. Nós existimos ali.
Ela uma bacante desenhada em desventura por Bouguereau, de traje leve a evidenciar aquela nudez crua. Entrega-se à loucura, desmedida violência reflectindo sons na parede do corredor estreito e longo, numa luta livre, numa dança lasciva. Sente-lhe o Tirso de Baco, o cacho irrompe por ela, cheira a semén. O ruído é agora das carnes contorcendo, fazendo um batuque constante no chão que estala de talhas de madeira podre.
Mas… o punhal atravessa lhe o frente, o grito forte dela e gane enquanto a cabeça bate três vezes ferozmente. O dedo dele balançava nos lábios dela, ouvia-lhe a angústia. Ela descria os olhos e lia-se sinistro nas áureas. Atravessou-lhe o cotovelo e cravou convicto o punhal no ombro, peça escultural. O fervor doentio enquanto se descolava a lamina da carne quente. Guatejava sangue, deslocou a faca e a carne era visível, a entranha daquela que sentia agora o que ouvira. Quis cravar-lhe ainda a mão na clavícula exposta. Mordeu-lhe as mãos, repleto de adrenalina, até ressoar o estraçalhar entre dentes.
Era a hora? Ela ouvia a hora! Num gesto mudo, ali no corredor estreito e longo, onde a lâmpada baloiçava e a névoa lá na rua do beco, o punhal ultrapassava-lhe o peito, enquanto se endurecia a auréola do mamilo.
Pensou como ela era bela, inigualavelmente bela. Mas girou a faca e algo estalou, as costelas frágeis sucumbiam à fúria dele. E fez-se saltar entranhas e sangue, qual espectáculo de pirotecnia. O golpe mortal…sem treino, só instinto. A certeza do fim de quem quis existir com ele.
Contemplou-a como a um animal abatido e esperou que o seu olhar perde-se o brilho.
A vida é tão efémera quando se decide existir com ele.
Terá ela ouvido a tranquilidade, questionou-se. Não se importa, mostrou-lhe a claridade.
Sileno, esta manhã decidiu ama-la e seguiu confiante. Iria ser o inicio das suas vidas. Helena saberia em breve.
O apartamento à direita, da rua do beco estava aberto. Decidiu adentrá-lo…ao fundo do corredor estreito e longo ela sazia bela. Ao lado um bilhete.

Estás atrasado. Como ousaste atrasar-te tanto! Ela sucumbiu a mim…
Remetente: Medo.


As histórias podem ser escritas, contadas. Até sem linguagem, cantadas, desenhadas ou podem ser o que ouvirem. Ela ouviu o medo e ele contou a história dela.

Sem comentários: